Para uma história cultural das pescas
Para uma história cultural das pescas 01/01/2022 Os geógrafos que mais se interessaram pela vida marítima e pelas formas de ocupação do litoral – Orlando Ribeiro, Suzanne Daveau e Raquel Soeiro de Brito, entre outros – cedo notaram que as pescas portuguesas evidenciam dois universos distintos: as pescarias da costa ocidental, moldadas por intercâmbios técnicos com o mundo Atlântico e por uma orla costeira desabrigada e muito exposta aos humores do Oceano; a sul, as pescas algarvias, uma mistura de heranças atlânticas e mediterrânicas, muito aberta às novidades andaluzas e catalãs. Historicamente, inovações tecnológicas tão decisivas como a introdução do vapor, os porões refrigerados ou os aladores mecânicos de redes passaram a distinguir as pescas entre si. Não apenas em função da distância dos pesqueiros em relação aos portos de origem (pescas locais, costeiras, do alto ou longínquas), mas também a partir do modo como se organizam os fatores de produção e as relações de trabalho a bordo e junto à costa (pescas artesanais ou industriais, conceitos muito ambíguos). As pescas e os pescadores ocupam um espaço saliente no imaginário português. A inclinação lendária da cultura portuguesa ora faz das pescas um epifenómeno das navegações e descobertas, ora as envolve num essencialismo antropológico que tende a representar as comunidades piscatórias como coletivos puros. Do século XVIII aos nossos dias, a mitificação do mundo das pescas e a mudança relacional entre as gentes da terra e do mar inibiram o entendimento das pescarias. Razões práticas multisseculares, mas nem sempre evidentes, explicam essa relativa marginalização: o peso esmagador da ruralidade na fisionomia da nação, salientado por historiadores como Charles Boxer, a reduzida expressão social das profissões marítimas, a irregularidade histórica das navegações e da empresa oceânica, a intermitência e as fragilidades do nosso “capitalismo marítimo”. No século XVIII, problemas de abastecimento de … Continue reading “Para uma história cultural das pescas”